segunda-feira, 6 de abril de 2009

No fundo do baú tinha um album

e lá, doutor, tinha escrita esta história que me tocou um bocado:

"Lá fora a noite dormitava, velada pelos candeeiros altos, foscos, pintados de fresco. Um verde que contrastava com a cabine telefónica. Tipicamente britânica.A rua estava deserta. Silenciosa.
Caía orvalho suavemente. Não é tempo dele. Não está tempo de calor, mas o inverno já partira.
Passava o “televendas” em todos os canais. Restava-lhe o rádio. Pequeno, cinzento, com uma antena. Nada actual, mas útil.
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O banho aguçara-lhe a vontade de acender a lareira. Acendeu-a. Saber-lhe-ia bem o crepitar da lenha quando queima. O cheiro das pinhas. As que restaram da consoada.Aqueceu chá, ligou o rádio numa frequência qualquer que passa jazz… melancólico. Estridente no seu pranto.
Acomodou-se no sofá, puxou a manta que lhe cobriu os pés descalços. Não lhe apetecia nem ler, nem dormir, nem pensar.Num jeito desprendido, leve, dócil procurou aquele álbum de retratos… Página a página, deliciou-se com o passado. Absorveu, mais uma vez, sorrisos, poses, momentos. Como se tivesse sido ontem.
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Fazia tanto tempo… tanto tempo. Tanto que já não se lembrava quando tinha sido. Tinha o mau hábito de não legendar as fotos…
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A rádio participava deste regresso furtivo ao passado, com clássicos. Sucessos daquele tempo já velho.Ah! Tinha sido feliz. Tinha sorrido, tinha amado, dançado nos pensamentos. Tinha partilhado momentos. Construído sonhos. Dividido alegrias. Roubado tristezas.
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Como tudo mudara. Tinha sido como nos filmes. Um jardim colorido, uma casa caiada, um sol quente e no momento seguinte… o choro das crianças órfãs, o grito das mães de luto, as feições duras de capitalistas que deixaram os anéis grossos e maciços para terem o sabugo das unhas negras, as calças rotas, mal cheirosas. Que trocaram os sofás pelos passeios.
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Que será feito dele? Porventura estará bem? Estará feliz? Criará álbuns como se fossem cadernetas? Arrancará sorrisos? Acreditará? Partirá de novo? Deixando, repetidamente, rastos de destruição, de dor? Desbastará cidades inteiras como nos filmes?E essas cidades? Saberão crescer de novo, sobre as ruínas? Saberão avançar renovadas ou permanecerão como nos filmes? A VILLA, por exemplo?
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Não soube responder. Sabe apenas de si. Do choque. Do medo. Da muralha criada em seu redor. Do seu pequeno mundo. “Não se constroem castelos sobre ruínas”. Construíra apenas o conforto. Todos os dias recordando, porque queria esquecer.
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Fechou o álbum. Guardou-o de novo. Junto ao carrinho das bebidas. Chorou. Mais uma vez. E outra. Soluçou. Sem a certeza de ser por pena de si mesma que, cobardemente, se fechara num conforto hipócrita, desnorteado por hábitos solitários. Como se fosse um filme sem legendas, numa guerra fria que não queria que durasse mais cem anos. Porque as horas, no fundo, eram dias. Porque os dias corriam depressa, mas pareciam anos…
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A lareira… apagou-se. Nem sequer restaram brasas. Restavam apenas cinzas. O rádio cansou-se daquela cumplicidade melancólica e anunciava agora, a meteorologia, o trânsito, as primeiras notícias da manhã. Os pés estavam gelados. Dormentes.
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O dia lá fora nasceu, finalmente. Não há cabines. Não há orvalho; há neblina. Um cinzento, tipicamente, britânico.Afinal os candeeiros eram de cimento bruto. A rua ensurdecida pelo trânsito, tinha passeios negros, valetas sujas.Vestiu-se, ou aliás, mascarou-se de coragem e saiu para a mesma vida de sempre.Bateu a porta e tropeçou num embrulho deixado no tapete da entrada. Era um álbum. Em branco. Sem rodapés para legendar."

Que pensa disto doutor?